Dom Bosco sonhou com uma educação capaz de transformar vidas, tirando jovens da pobreza e conduzindo-os ao protagonismo social. Seu projeto educativo nasceu da compaixão diante de uma juventude abandonada, marginalizada e sem perspectivas. Para ele, a educação deveria ser um caminho de transformação. No entanto, ao olhar para o Brasil contemporâneo, especialmente para as crianças negras, percebemos que esse sonho ainda não se concretizou.

A criança negra é, muitas vezes, a face mais visível da pobreza estrutural que marca nossa sociedade. Vive em contextos onde o acesso à educação de qualidade é um percurso árduo, frequentemente interrompido pela fome, pela violência e pela exclusão. Mesmo quando encontra acolhimento e oportunidades, como nas escolas ou obras sociais inspiradas no carisma salesiano, persiste o drama da desigualdade: estudar de barriga vazia, voltar para casas sem saneamento, enfrentar preconceitos e estigmas cotidianos. A fome, inimiga silenciosa do aprendizado, rouba sonhos e apaga sorrisos.

É preocupante constatar que, em um mundo marcado por avanços tecnológicos e grande capacidade produtiva, tantas crianças ainda necessitam do mínimo necessário para viver com dignidade. Enquanto se fala em inteligência artificial e inovação, milhões de meninos e meninas continuam privados de alimentação adequada, saúde e acesso ao conhecimento. Não por falta de capacidade, mas por falta de justiça social. Essa contradição interpela todos nós, discípulos de Dom Bosco, que acreditamos na potência transformadora do amor educativo.

O carisma salesiano nos convida a ver Cristo nos rostos jovens, especialmente nos mais pobres. Quando esse rosto é o de uma criança negra, é preciso um olhar ainda mais atento, capaz de reconhecer as marcas de uma história de exclusão e resistência. Lembrar o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, à luz da espiritualidade salesiana, é mais do que celebrar a cultura e a herança afro-brasileira: é reafirmar o compromisso de lutar por equidade, romper as amarras da pobreza e promover a formação integral de crianças e jovens que continuam travando uma batalha diária contra a fome e o esquecimento.

Dom Bosco acreditava que cada jovem, independentemente de sua origem, traz em si uma “semente de bem”. Essa semente, porém, precisa de solo fértil para germinar. Quando o ambiente social é hostil e faltam condições básicas, o potencial humano é sufocado. Por isso, educar à maneira salesiana hoje significa também denunciar as estruturas que mantêm a pobreza e anunciar caminhos de transformação. Significa lutar por políticas públicas que garantam alimentação escolar digna, promover a cultura da paz, incluir e valorizar a história e a identidade negra no espaço educativo.

O sonho de Dom Bosco permanece vivo quando seus filhos e filhas se colocam ao lado dos que mais sofrem. Contudo, não basta acolher; é necessário cuidar, proteger e transformar. A educação salesiana não é neutra: ela é profética. Deve ser sinal de esperança em meio à injustiça, de vida em meio à morte social. Quando um educador salesiano dá de comer, acolhe, orienta e evangeliza uma criança faminta, realiza o coração do sonho de Dom Bosco e anuncia o Reino de Deus.

Lembrar o 20 de novembro é, assim, renovar nossa missão. É reconhecer que a verdadeira enculturação do Evangelho passa pela escuta da dor do povo negro, pela valorização de sua cultura e pela retomada do ideal educativo que une fé, razão e amor. O sonho de Dom Bosco continua atual, mas só se tornará realidade quando nenhuma criança, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, tiver que escolher entre aprender e comer.


O P. Carlos José da Silva é membro da Comissão de diversidade e inculturação da Inspetoria São João Bosco.

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