A data também marca a memória de Zumbi dos Palmares, morto em 1695 numa emboscada. Ele foi um negro escravizado e um dos maiores líderes na luta pela libertação dos negros e contra o sistema escravista da época. A proposta foi feita, na década de 70, pelo Grupo Palmares (1971-1978), nascido em Porto Alegre (RS).
Até o ano passado, apenas seis estados e algumas cidades adotavam o feriado. Agora, ele passou a ser nacional após a sanção da Lei n° 14.759, em dezembro de 2023, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo, a data já havia sido oficializada em 2011. O objetivo é refletir sobre o valor e a contribuição da comunidade negra para o Brasil e discutir o racismo ainda presente na sociedade brasileira — diferente do 13 de maio, que marca a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.
O feriado é uma forma de valorizar essa data e fortalecer as ações de luta contra o racismo e a exclusão determinada pela cor da pele de uma pessoa. De acordo com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população preta passou de 14,5 milhões em 2010 para 20,6 milhões em 2022. De acordo com a Agência Brasil, do governo federal, os resultados revelaram que 55,5% da população se identifica como preta ou parda. Ou seja, o Brasil historicamente é um país com forte herança construídas pelos negros escravizados que habitaram esse território.
Nesses 524 anos, desde a chegada das caravelas portuguesas, o povo negro escravizado que chegou nos navios negreiros, trazido de diferentes regiões do continente africano, já começou sua história por aqui sob o açoite e muita humilhação, pois não era visto como gente, como ser humano. Ou seja, desde o começo da história de nosso país o negro foi colocado à margem da sociedade, apesar de ter sido determinante para o desenvolvimento econômico do Brasil colônia e império, mas era invisibilizado, em detrimento da sua cor e da ganância dos senhores das Casas Grandes.
Aqui no Brasil, os negros resistiram e também imprimiram sua cultura, hoje reconhecida em nossa língua portuguesa, na cozinha, nas habilidades com a terra e na cultura. Da mesma forma foram se adaptando a realidade que encontraram e absorvendo culturas europeias, por exemplo, inclusive religiosas.
Justamente por isso, podemos perguntar: Qual a relação entre o Dia da Consciência Negra e os 500 anos de São Benedito?
Filho de escravizados na Sicília, Itália, no século XVI, São Benedito é reconhecido por sua humildade, fé e milagres. Ele simboliza resistência, devoção e orgulho para muitas pessoas negras no Brasil. Enquanto o Dia da Consciência Negra destaca a luta por igualdade e direitos, São Benedito representa superação e santidade em um contexto de discriminação racial.
“A luta contra o racismo é uma bandeira de resistência da população negra, visando melhores condições de vida e inserção social. Ao longo da história do Brasil, percebe-se que é possível existir tanto dentro quanto fora do sistema. Zumbi dos Palmares representou a luta contra o sistema escravista e suas múltiplas formas de exploração. Ao meu ver, São Benedito representa resistência cotidiana dentro da Igreja Católica. Ele se inseriu no catolicismo, venceu barreiras sociais e étnico-raciais, tornando-se um preto no altar”, afirma Fabiana Schleumer, professora de História da África na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Para Fabiana, São Benedito é importante porque, além de ocupar um lugar no altar, sua santidade é motivo de honra e orgulho para os negros. “Ele simboliza os anseios e a luta por inclusão social. Imagine se todos os santos fossem brancos. Como nós, negros, nos sentiríamos dentro da Igreja? A comunidade negra reunida na paróquia, na catedral ou na igreja se vê representada por São Benedito. Ele é o outro que sou eu e os meus antepassados; é espelho.”
Um santo que rompeu barreiras em seu tempo
Sobre a santidade e a representatividade de São Benedito, Frei Alvaci Mendes da Luz, pesquisador e historiador da Universidade São Francisco (USF), vinculada à Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, considera que as pautas antirracistas atuais não eram uma questão no século XVI, época em que São Benedito viveu, nem nos séculos seguintes, quando a devoção a ele chegou ao Brasil.
“Embora ele vivesse o racismo na pele, o conceito de racismo como entendemos hoje não existia em sua época. Não podemos fazer uma leitura moderna daquele contexto. No entanto, ao olhar para São Benedito, vemos um homem negro que conseguiu superar estruturas racistas, considerando nossa leitura atual. Por exemplo, os estatutos franciscanos em Portugal e na Espanha — incluindo a Sicília, onde Benedito nasceu — proibiam a entrada de homens negros, judeus convertidos e muçulmanos nos conventos”, explica o frade.
Segundo Frei Alvaci, São Benedito entrou para a vida religiosa em um momento de renovação franciscana, marcada por simplicidade e austeridade. Apesar de iletrado, ele alcançou cargos importantes, como guardião do Convento de Santa Maria e Mestre de Noviços. “Ele conseguiu se impor em uma sociedade altamente segregadora, não por mérito individual, mas por sua força e personalidade.”
Sobre a representatividade do santo para a população negra, o frade esclareceu que São Benedito foi trazido para o país pelos franciscanos, no século XVII, como um modelo de santidade para os homens e mulheres negros que aqui habitavam.
“Era a figura de um homem negro galgou os lugares mais altos dos altares. Ele é apresentado às comunidades negras como modelo de santidade, e de identidade devido a cor da pele. Essa é uma importância valiosa, tanto que no Brasil a adesão é grande entre a população negra, que acaba incorporando São Benedito como o seu santo de devoção ao lado de Nossa Senhora do Rosário”.
Na religiosidade popular, o santo se mantém como uma figura representativa. “Toda essa representação religiosa cultural que ainda existe com muita força com os reisados, com as congadas, são festas muito bonitas e muito fortes em um Brasil profundo, tendo São Benedito como uma figura de identidade racial das comunidades negras do país”, salienta o frade.
Olhar para a realidade atual
Juarez Xavier, ativista nas questões relacionadas ao racismo e professor da FAAC/Unesp, em Bauru (SP), ressalta que, apesar das conquistas, o Brasil ainda enfrenta grandes desafios na luta contra o racismo e pela dignidade do povo negro.
“O racismo interditou o reconhecimento da população negra. Hoje, no Brasil, vivemos um processo de aniquilamento racial. Dados sobre saúde, educação, renda e condições de vida conspiram contra a dignidade da população negra. Apesar de avanços subjetivos, como a recuperação da humanidade dos negros, precisamos de políticas concretas que garantam direitos à vida, ao trabalho e à cidadania.”
Celebrar o Dia da Consciência Negra no Brasil é mais um motivo para lembrar que os valores de justiça, paz e integridade da criação devem ser fortalecidos em nossa sociedade que ainda tem muito a aprender com os exemplos de homens e mulheres, santos e defensores da causa antirracista, que lutam a favor da dignidade da vida da população negra, com o objetivo de romper as fronteiras da cor da pele.