Em 2024, somos convidados a recordamos o bicentenário do Sonho dos nove anos de Dom Bosco. Este sonho era muito mais do que um gracioso episódio de um menino de nove anos; era como que um sonho-visão e uma premonição daquilo que deveria fazer no decurso da sua vida.
Sessenta e dois anos depois, ao celebrar a sua primeira e última missa na Basílica do Sacro Cuore de Roma, consagrada dois anos antes, Dom Bosco comoveu-se até às lágrimas mais de 15 vezes porque, como num filme em rápida sucessão, via passar todas as cenas da sua vida, compreendendo que havia sido sempre guiado pela Divina Providência e, em particular, conduzido pela mão da Auxiliadora, ao ponto de dizer: “Foi Ela quem tudo fez”.
Aquela passagem de ano de 1862
Esta comemoração leva-me a pensar numa passagem de ano significativa na vida de Dom Bosco. Trata-se do 1º de janeiro de 1862. As Memórias Biográficas narram que Dom Bosco, doente até o dia 1º anunciou que tinha uma importante notícia a dar a todos os moradores do Oratório, grandes e pequenos. “Não se pode descrever a comoção, causada pela promessa de Dom Bosco, que entretanto agitava todos os rapazes. Com que impaciência passaram a noite de 31 de dezembro para o 1º de janeiro, e o dia seguinte! Com que ansiedade aguardaram pela noite para ouvir quanto lhes diria o bom pai!”, narra o padre Lemoyne.
“Finalmente, depois das orações, os rapazes em silêncio profundo aguardaram Dom Bosco, que subindo a cátedra desvendou o mistério e disse: ‘O lema que vos dou não é meu. Que diríeis se Nossa Senhora mesma em pessoa viesse a um por um de vós dizer-vos uma palavra? Se Ela tivesse preparado para cada um o seu bilhete para lhe indicar aquilo de que ele mais precisa, ou aquilo que Ela quer dele? Pois bem, é mesmo assim. Nossa Senhora dá o lema a cada um! Penso que alguns quererão saber e perguntarão: - Como aconteceu isso? Dom Bosco é o secretário de Nossa Senhora? - Eu respondo: não vos digo nada mais do que isto que vos disse. Os bilhetes escrevi-os eu, mas como isso aconteceu não posso dizê-lo: e nenhum de vós me pergunte, porque me meteria em apuros. Cada um contente-se por saber que o bilhete vem de Nossa Senhora. É uma coisa singular! Há 20 anos que peço esta Graça e finalmente obtive-a. Cada um de vós, portanto, considere esse aviso como se viesse da boca mesma da Virgem Maria. Vinde por isso ao meu gabinete e darei a cada qual o seu bilhete’”. Dom Bosco podia dizer isto porque ele mesmo havia recebido de Nossa Senhora, na idade de nove anos, a mensagem que marcaria todo o decurso da sua vida.
Então, continuando a narração daquela mesma noite, os salesianos começaram a passar pelo gabinete de Dom Bosco para receber o seu bilhete. Muitos revelaram-no. O que era endereçado ao padre Bonetti, que escrevia a crônica diária, dizia: “Toma nota do número dos meus filhos”. O bom padre transcreveu na sua crônica tal recomendação e acrescentou-lhe: “Vós, minha dulcíssima Mãe, que me destes um tão querido conselho, dai-me também os meios para o pôr em execução, e fazei que eu anote verdadeiramente este belo número, mas que nele esteja eu também incluído”.
O do padre Rua dizia: “Recorre a mim com confiança nas necessidades da tua alma”.
Desde a manhã seguinte, os jovens amontoaram-se à porta do gabinete de Dom Bosco, para receber cada qual o seu bilhete. Posso facilmente imaginar como Dom Bosco sabia chegar ao coração de cada salesiano e de cada rapaz do Oratório, não com uma invenção, mas com a convicção profunda daquilo que Nossa Senhora queria para cada um deles, e ao mesmo tempo conseguia fazê-lo daquele modo em que Dom Bosco foi sempre um verdadeiro mestre e um verdadeiro gênio: refiro-me à arte do encontro pessoal, do diálogo, do olhar que chega ao fundo do coração.
E, ao ler isto, perguntei-me se não seria possível que o mesmo acontecesse a nós. Enviamos cartões de boas festas a muitas pessoas. Se Maria Santíssima tivesse enviado um cartão de boas festas à Congregação Salesiana e a cada um de nós, à bela e grande Família Salesiana, família de dom Bosco, o que teria escrito?
Caminhar com Dom Bosco
É belo imaginá-lo. Asseguro-vos que na minha imaginação há tantas coisas belas que Nossa Senhora poderia pedir-nos, quer pessoalmente, quer como família de dom Bosco, nascida para acompanhar os jovens e as jovens do mundo – sobretudo os mais pobres e necessitados – no seu processo de crescimento, amadurecimento, transformação...
O mistério do novo ano, que no fundo desenvolve o mistério do Natal, diz-nos: “Não estás condicionado pelo passado. Hoje mesmo podes começar desde o início, porque em ti há algo de novo. Toma nos braços o divino Menino, que te põe em contato com toda a novidade que está à disposição, genuína e intacta, na tua alma. Recomeça pelos pequenos, pelos jovens. Tem confiança na novidade em ti! Cada dia é o primeiro dia”.
Talvez bastasse fazer nossas as palavras que Maria diz a João Bosco no seu sonho: “Eis o teu campo, eis onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte e robusto”. Talvez se esperasse um conselho mais “espiritual”, mas só quem é humilde pode ser amável porque consegue gozar da presença dos outros. A humildade é a porta do amor para com os mais pequenos, os indefesos, os feridos da vida.
Só quem é sólido e forte pode caminhar atrás de Jesus hoje não obstante tudo. Porque nós queremos ver os prisioneiros livres, e que os oprimidos deixem de o ser; e em que mensagem ainda podem acreditar os pobres.
É escutar a voz da sarça ardente que nunca se consumirá: “Eu quebrarei as vossas cadeias e far-vos-ei caminhar de cabeça erguida”. Maria quer que os Salesianos e toda a sua Família, a bela família de Dom Bosco de todos os tempos, caminhem como Dom Bosco. Para isso, a melhor garantia será sempre tê-la como verdadeira Mestra que é, antes de tudo, Mãe. Uma verdadeira Graça para a nossa família.
Assim o expressaram os Reitores-Mores em toda a nossa história. Como fez o meu predecessor, padre Ziggiotti: “’Dar-te-ei a Mestra, sob cuja guia podes tornar-te sábio e sem a qual toda a sapiência se torna estupidez’ é a palavra fatídica do primeiro sonho, pronunciada pelo personagem misterioso, ‘o Filho d’Aquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia’. É, portanto, Jesus que dá a Dom Bosco a sua Mãe como Mestra e guia infalível no duro caminho da sua vida inteira. Como agradecer devidamente a esse dom extraordinário feito pelo Céu à nossa Família?”.