Professor de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFRJ, poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, o carioca Marco Lucchesi se prepara para deixar a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL), que amanhã deve eleger o jornalista Merval Pereira, candidato único, para o cargo. Do Pará, onde visitava nos últimos dias aldeias indígenas, ele diz que, embora a instituição não seja tradicionalmente palco para discussões políticas, a “má política” atravessou a vida dos brasileiros, e ele não podia ficar calado diante da fome, da censura de livros e do racismo. Com conhecimento de mais de 20 idiomas, ele pretende em 2022 tirar um ano sabático, aprender Nhengatu (lingua tupi) e se aprofundar no turco, além de manter o engajamento no trabalho literário que faz junto a detentos e como presidente da Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente.
No seu discurso de posse, o senhor fez uma defesa da diversidade racial e das culturas indígenas e quilombolas. Sua visão é a mesma?
Estive agora com o cacique Clemente Tembé em Garrafão do Norte, longe de Belém, que foi uma experiência fascinante. Me apaixonei pelos rios da região. E, antes de vir ao Pará, fui a duas comunidades no Rio. Encontrei o Rumba Gabriel, liderança no Jacarezinho, e subi também o Morro da Babilônia. Sempre visitei prisões, sobretudo prisões cariocas, e também hospitais psiquiátricos, em virtude do trabalho da doutora Nise da Silveira. Com a pandemia e com o desregramento econômico do Brasil, isso se tornou imperioso enquanto cidadão e enquanto cidadão que escreve.
O senhor já afirmou que manter contato com detentos é uma escolha existencial.
Em outubro, estive na prisão de segurança máxima de Brasília, mas sem o que gosto, que é o encontro com detentos. Estou preparando uma grande exposição com prisões do Rio para o ano que vem. Venho conversando com professores de arte de escolas prisionais. Vai ser um sinal importante para mostrar que há uma só humanidade e formas ambíguas de lidar com o nosso abismo humano.
O que significa conhecer realidades tão distintas?
É um processo de autorreconhecimento. Não quero que me leve para a literatura, não tenho vontade de usar como laboratório para escrita. O que me levou até eles foi a literatura de Dostoiévski e a solidariedade com irmãos brasileiros. E, quanto mais me aprofundo nesse trabalho no cárcere e também em hospitais e nas comunidades, mais me emociono, sobretudo na pandemia, com a auto-organização no Brasil na ausência da República, que não chega para todos.
Que experiências de auto-organização o senhor já viu?
Fico encantado com a autogestão nas favelas cariocas, com os intelectuais orgânicos que se organizaram para a proteção na pandemia. Esse é um aprendizado filosófico tremendo. Agora, em Garrafão do Norte, o cacique Clemente Tembé me falou da luta que realizou durante anos para que eles tenham direito à terra e para expulsar invasores. Fiquei profundamente tocado, não havia discurso de ódio. Vi um homem de inteligência extraordinária do alto da sua idade percebendo o essencial.
A presidência na ABL o ajudou a dar mais visibilidade a esse trabalho e a essas pessoas?
Nunca quis anunciar isso aos quatro ventos. Seria ridículo. E a Academia já fazia um trabalho social. Eu não quero ser visto como se estivesse fazendo algo para minha santificação e publicidade: sou apenas escritor e professor e fui descobrir um Brasil.
Mas como foi, na presidência, aproximar a Academia da sociedade, que agora tem Fernanda Montenegro e Gilberto Gil como imortais?
Não foi fácil, não por questões internas da Academia, mas pela conjuntura. É como se um destino tivesse caído no seu próprio colo. A Academia sempre procurou, com muita razão, não entrar em política, mas a má política acabou atravessando a vida dos brasileiros. Temos 125 milhões de brasileiros que voltaram à insegurança alimentar, vimos censura de livros por parte de pessoas alopradas e também a taxação sobre livros diante da derrocada do sistema cultural brasileiro. Não é possível não responder a tudo isso. Quando propõem um auto da fé para queima de livros, propõem vender o Palácio Gustavo Capanema, quando falam mal de um menino negro de 9 anos na Bahia por ele ser um leitor, não dá para ficar calado. Quando chegamos a 600 mil mortos na pandemia, perguntei aos colegas: vamos baixar a bandeira a cada certo número de mortos? Certas questões vão além da política, são de dignidade humana.
Na presidência da ABL, teve tempo para escrever? E quais são seus planos para quando deixar o posto?
Publiquei vários livros: romance, poesia reunida, três ou quatro traduções... Não parei um instante de escrever nem de tocar piano. E não deixei de dar aula no mestrado e no doutorado. Na presidência, foram quatro anos sem interlocução republicana. Basta ver o que foi a nossa cidade, o que foram os órgãos federais nesse tempo. Agora estou feliz, vou pegar um ano sabático. Vou para a Itália e para a Turquia, porque estou fazendo traduções de poetas turcos. É a língua mais difícil que aprendi até hoje. E estou apaixonado pelo Norte do Brasil. Quero passar um mês e meio pelos rios da região buscando comunidades indígenas. Estou aprendendo Nhengatu, a língua do novo tupi. O Brasil é uma potência de país fora dos padrões.
Qual será o papel da ABL daqui para frente?
Somos sobreviventes de uma pandemia, e depois de tudo que se impôs diante dos nossos olhos como desafio não podemos perder a capacidade de nos indignar e de ampliar laços solidários. A Academia está dando uma resposta ao tempo atual dentro do possível, para que seja mais parecida com o que retrata o IBGE, com mais negros e mulheres. Mas são 40 cadeiras, que duram a vida da pessoa. Há um relógio institucional com o seu próprio ritmo. Mas a maior representação dentro da Academia é irreversível. E eu vejo hoje uma marcha no Brasil, como se o país estivesse afinando instrumentos, com todos buscando na beleza da sua diversidade uma grande afinação para tocarem juntos, num processo que não tem volta.
Fonte: O Globo Rio
Por: Ludmilla de Lima
01/12/2021 - 03:26 / Atualizado em 01/12/2021 - 08:32